João Paulo II, Ortega e a Nicarágua
O padre Ernesto Cardenal, falecido em 2020, em foto de 2013: ex-ministro sandinista, repreendido por João Paulo II em 1983, rompeu com Daniel Ortega e se tornou forte crítico do ditador.

Hoje completam-se 19 anos do dia em que São João Paulo II partiu para receber de Deus sua recompensa eterna. Eu não tinha nem um ano de Gazeta do Povo quando fui convocado para ajudar a atualizar o material que já tínhamos preparado desde que a doença do papa se agravou. O caderno especial chegou às bancas poucas horas depois da confirmação oficial do falecimento. Todos os grandes jornais e revistas fizeram suas edições especiais, quase todas com aquele retrato clichê de João Paulo II: um líder carismático, que ajudou a acabar com a Guerra Fria, mas também um ultraconservador contrário a tudo o que essas publicações viam (e ainda veem) como “progresso”, especialmente em relação à defesa da vida e da família. Nós fizemos diferente, quisemos dar a verdadeira dimensão daquele longo papado; muitos leitores responderam dizendo “o caderno especial da Gazeta é o único que tenho vontade de guardar como recordação”.

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Em março de 1983, João Paulo II esteve rapidamente na Nicarágua, como parte de uma visita mais longa à América Central. Daniel Ortega já governava o país, e ainda contava com o apoio de boa parte da população, pois fazia poucos anos que os sandinistas haviam deposto outro ditador, Anastasio Somoza. Parte do clero também estava com o esquerdista, e muita gente só se lembra dessa viagem papal pela célebre imagem da reprimenda de João Paulo II ao padre-ministro Ernesto Cardenal. Na biografia Sua Santidade, Carl Bernstein e Marco Politi descreveram a atmosfera carregadíssima que marcou a visita, o contexto geopolítico em que ela se deu, e a enorme confusão causada pelos gritos dos militantes sandinistas nos momentos mais duros da homilia do papa na missa campal em Manágua. Vale a pena recordar algumas dessas palavras:

“A unidade da Igreja é posta em questão quando aos poderosos fatores que a constituem e mantêm – a mesma fé, a Palavra revelada, os sacramentos, a obediência aos bispos e ao papa, o sentido de uma vocação e responsabilidade comum na missão de Cristo no mundo – são antepostos considerações terrenas, compromissos ideológicos, opções temporais, inclusivamente concepções da Igreja que suplantam a verdadeira.

Sim, meus queridos irmãos centro-americanos e nicaraguenses: quando o cristão, seja qual for a sua condição, prefere qualquer outra doutrina ou ideologia ao ensinamento dos Apóstolos e da Igreja; quando se faz dessas doutrinas o critério da nossa vocação; quando se pretende interpretar de novo segundo as suas categorias a catequese, o ensino religioso, a pregação; quando se instalam ‘magistérios paralelos’, como disse na minha alocução inaugural da conferência de Puebla, então debilita-se a unidade da Igreja, torna-se mais difícil o exercício da sua missão de ser ‘sacramento de unidade’ para todos os homens.

A unidade da Igreja significa e exige de nós a superação total de todas estas tendências de dissociação; significa e exige a revisão da nossa escala de valores. Significa e exige que submetamos as nossas concepções doutrinais e os nossos projetos pastorais ao magistério da Igreja, representado pelo papa e os bispos. Isto aplica-se também no campo da doutrina social da Igreja, elaborada pelos meus Predecessores e por mim mesmo.

“A Igreja (...) deve permanecer unida para anunciar a verdadeira mensagem do Evangelho e que esteja livre de deformações devidas a qualquer ideologia humana ou programa político.”

João Paulo II, em homilia durante visita à Nicarágua, em março de 1983.

(...) Queridos irmãos: tende bem presente que há casos em que a unidade só se salva quando cada um é capaz de renunciar a ideias, planos e compromissos próprios, até mesmo bons – tanto mais quando desprovidas da necessária referência eclesial – em favor do bem superior da comunhão com o bispo, com o papa, com toda a Igreja. De fato, uma Igreja dividida, como já dizia na minha carta aos vossos bispos, não poderá cumprir a sua missão ‘de sacramento, isto é, sinal e instrumento de unidade no país’. Por isso, eu alertava sobre ‘o absurdo e perigoso que é imaginar-se como ao lado – para não dizer contra – da Igreja construída ao redor do bispo, outra Igreja concebida só como ‘carismática’ e não institucional, ‘nova’ e não tradicional, alternativa e, como se preconiza ultimamente, uma ‘Igreja popular’. Quero hoje reafirmar estas palavras, aqui diante de vós.

A Igreja deve manter-se unida para poder opor-se às diversas formas, diretas ou indiretas, de materialismo que a sua missão encontra no mundo. Deve permanecer unida para anunciar a verdadeira mensagem do Evangelho – segundo as normas, da Tradição e do Magistério – e que esteja livre de deformações devidas a qualquer ideologia humana ou programa político.”

Quatro décadas depois dessa visita, a Igreja na Nicarágua está toda consciente do mal que Ortega representa. Até mesmo o padre Cardenal tornou-se crítico do ditador, tendo rompido com ele ainda nos anos 90. O funeral do sacerdote, em 2020 – realizado um dia antes do aniversário da visita de João Paulo II à Nicarágua –, foi interrompido por militantes sandinistas que chamavam Cardeal de “traidor”. Mesmo assim, a advertência do papa santo segue valendo em muitos outros países nos quais persiste a tentação de colocar a fé abaixo das conveniências políticas e das paixões ideológico-partidárias, como vemos por aqui com alguns “coroinhas de Lula”.