Na mesma linha do artigo de Barros e Silva, os redatores pretendiam retratar a Irmandade Muçulmana como um grupo moderado e pacífico, formado não por extremistas religiosos, mas por profissionais liberais e laicos. O estranho é não terem notado contradição alguma entre afirmar que a organização renunciara à violência nos anos 1950 e, ato contínuo, que tinha como maior aliado o Hamas, com quem compartilhava a proposta de uma luta armada contra israelenses. Ou bem se apoia um grupo terrorista ou bem se renuncia à violência. Não é possível fazer ambas as coisas ao mesmo tempo.
Ainda naquele mesmo 7 de fevereiro de 2011 – porque o coletivo das redações costuma agir de maneira concertada em torno de certas pautas e agendas políticas –, o colunista Clóvis Rossi alertou para o risco de se fazer com o islamismo no século 21 o mesmo que se fizera com os judeus no século 20. Sem oferecer ao leitor qualquer evidência de que os muçulmanos estivessem ando por algo semelhante ao que sofreram os judeus durante o Holocausto, Rossi fez uma estranha reclamação: “Cada vez há mais análises dizendo que ‘essa gente’ (i. e. os muçulmanos) não tem direito a querer a democracia porque basta que a tenham para que votem, por exemplo, no Hamas”.
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Gostaria de saber onde Rossi encontrou análises que tratassem os muçulmanos por “essa gente”. Ele poderia ter citado ao menos uma. Porque, dando uma olhada nos principais veículos de comunicação brasileiros, as únicas análises e opiniões que encontrei eram exatamente como as de Rossi, sugerindo igualmente que os muçulmanos eram vítimas de preconceito e demonização. O colunista nem se deu conta de que, no mesmo jornal e na mesma data em que reclamava das supostas análises “islamofóbicas”, seu colega Fernando de Barros e Silva fazia um alerta equivalente em relação à Irmandade Muçulmana. Rossi jamais itiria – pois iti-lo seria perder uma vantagem estratégica –, mas a sua própria posição sempre foi majoritária, se não mesmo hegemônica, dentro dos estúdios e redações.
Mas, como jornalista não tem ideia própria, havia decerto algum “especialista” companheiro fornecendo os subsídios teóricos para a pauta. Especialistas como Arlene Clemesha, então diretora do Centro de Estudos Árabes da USP, e figurinha carimbada nos telejornais e mesas-redondas das grandes emissoras. No programa Entre Aspas da Globo News, por exemplo, que foi ao ar em 1.º de fevereiro de 2011, ela opinava com pose de expert: “O que chama atenção é o medo de que isso tudo possa levar a Irmandade Muçulmana ao poder... O problema não é o fato em si. O que causa espanto é o medo que o mundo tem disso. Por que é que têm tanto medo de um governo islâmico?... Eu acho que é infundado esse medo, porque os islâmicos estão ali prontos para dialogar como qualquer outra força política dentro do país. Eles não são seitas, não são grupos terroristas, são partidos políticos”.
O comentário surgiu no contexto de uma questão sobre a transição política no Egito. Atropelando a pergunta do entrevistador e o “fato em si”, Clemesha parecia ansiosa para enfatizar um outro ponto: o medo que Israel e o resto do mundo tinham de um governo islâmico era pura paranoia, fruto de preconceito e orientalismo (para falar como Edward Said, guia espiritual de Clemesha e demais analistas brasileiros). Segundo a especialista, a Irmandade Muçulmana era um partido político como qualquer outro, um grupo pacífico e aberto ao diálogo.
Diante da mera possibilidade de tomada do poder por radicais islâmicos no Egito, a imprensa brasileira, com a arrogância e a ignorância habituais, acusou os israelenses de paranoicos e tratou de dourar a pílula da Irmandade Muçulmana
Arlene Clemesha já havia utilizado o mesmo argumento em relação ao Hamas e ao Fatah. Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, em fevereiro de 2009, disse que era preciso reconhecer o Hamas e o Fatah como partidos políticos legítimos. Em suas palavras: “Em 2006, quando o Hamas venceu as eleições, aconteceu essa situação inaceitável, ou seja, o Estado de Israel, junto com os Estados Unidos e a Europa, não reconheceu a vitória do Hamas. Então, o povo palestino elegeu, democraticamente, um governo e o mundo não reconheceu esse governo e o derrubou. Isso, sim, é um exercício do autoritarismo e da ingerência. É assim que colocam o Hamas como um grupo terrorista, e não um partido político legítimo”.
Notem bem: são os EUA e Israel que “colocam o Hamas como um grupo terrorista”. Só no período de 1989 a 2008, pouco antes daquela entrevista edificante, foram mortos mais de 800 civis israelenses (incluindo muitas mulheres e crianças) em atentados terroristas com autoria assumida e celebrada pelo Hamas. Ademais, o “partido político legítimo” de Arlene Clemesha é dono da tevê Al-Aqsa, que costumava exibir o programa infantil Pioneiros do Amanhã, no qual uma menina dialogava com um rato de nome Farfur (“borboleta”, em árabe), uma cópia grosseira do Mickey Mouse, que instruía as crianças a odiar os judeus e tornar-se um mártir.
Mas a especialista midiática não se deixava intimidar pela realidade. Na mesma entrevista, justificava a eventual violência de grupos como o Hamas afirmando que a razão para o conflito no Oriente Médio teria sido a “imigração dos sionistas para a Palestina”. O problema teria se agravado em 1948, com a criação do Estado de Israel: “Precisamos levantar a questão: que legitimidade existe nessa partilha da Palestina? Como a ONU entrega a um movimento sionista uma terra que tem dono, que tem população, que tem cultura, que tem ado, enfim?... Será que não é mesmo hora de nós questionarmos a validade da resolução que criou essa partilha da Palestina? Agora, veja, eu não estou dizendo que vamos eliminar o Estado de Israel e jogar os judeus no mar”.
Só no período de 1989 a 2008, foram mortos mais de 800 civis israelenses (incluindo muitas mulheres e crianças) em atentados terroristas com autoria assumida e celebrada pelo Hamas
Felizmente, Clemesha não pensava em jogar os judeus no mar, como alguém poderia estar pensando. E essa demonstração inequívoca de tolerância bastou para fazer dela uma especialista autorizada da nossa grande imprensa. Quando nossos jornalistas invocam cientistas e especialistas para afirmar alguma coisa, é frequentemente de tipos como Arlene Clemesha que colhem a autoridade. Não sejamos negacionistas! Está provado, é científico: Israel é um enclave de crueldade e opressão num oásis de paz e harmonia.
Como se vê, aquela mitologia de origem do conflito no Oriente Médio é praticamente a única versão conhecida na imprensa. Só isso poderia explicar o fato de que, numa mesma semana, como se atendendo a comando superior, diversos veículos de comunicação tivessem batido unanimemente na mesma tecla: afirmando, por um lado, a natureza pacífica das organizações islâmicas – e da Irmandade Muçulmana em particular – e, por outro, o caráter suspeito dos alertas feitos por Israel.
Conhece-se uma das frases mais famosas de Nelson Rodrigues: toda unanimidade é burra. A unanimidade da imprensa brasileira nesse caso parece-o ainda mais. Mas, coitada, talvez não seja justo culpá-la integralmente. Sem autoconfiança e independência analítica, os nossos formadores de opinião reproduzem, inseguros, tudo o que leem na grande imprensa internacional. E esta, por sua vez, é pautada por facções intelectuais que convém conhecer melhor. Voltarei ao tema na semana que vem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos