Daí a súbita invasão identitária não apenas da política, mas também da academia, da mídia e, pelos mecanismos raivosos de imposição de delírios identitários reforçados por estes três atores sociais, do tecido social mesmo. Categorias pseudo-ontológicas que ontem não existiam am não apenas a existir, ex-nihilo, como se tornam obrigatórias, e ai de quem der um pio que seja contra a súbita introdução de toda uma visão de mundo baseada em identitarismos que – por serem a nova (pseudo)ontologia do indivíduo social – determinam, dão e tiram dignidade, poder, capacidade, “lugar de fala”, e tudo o mais.

E, curiosamente, uma das mais fortes emoções humanas, parelha em muitos aspectos à ira, é forçosamente atribuída a quem reclama. Se a neoidentidade pseudo-ontológica operante que emerge numa situação é a que surge do sobrepeso lipídico, como Minerva armada da testa de Júpiter, quem não a reconhece e não redesenha todo o espaço social ao redor dela (do tamanho das cadeiras do cinema ou do avião à lubricidade incitada ou não por corpos superadiposos nus) é “gordofóbico”. Como seria “transfóbico” o rapaz que não tem interesse sexual algum em outros rapazes que, vestindo um saiotinho mas mantendo-se firmemente do mesmo lado do dimorfismo sexual, am magicamente mesmo assim à neoidentidade de “mulher trans”. Ora, onde Phobos (o medo) entrou nisso?

A identidade do medo

É extremamente interessante que seja justamente o medo, não a ira, a luxúria, a gula, ou o amor, que tenha surgido como categorização pseudo-ontológica da reação à avalanche de demandas de base neoidentitária. Afinal, São João já escrevia, há quase dois milênios, que “no amor fraterno não há ‘phobos’” (1Jo IV,18). No amor certamente não há, mas em todos os elementos que constituem a base dos mecanismos de formação identitária, em todas as pseudo-ontologias que se tenta impor em substituição ao que o senso comum mostra estar ao redor, só o que há é medo. Phobos, fobia. Medo de crescer, medo de sofrer, mesmo de ser mal tratado, de, em suma, não ser amado.

É este medo (Phobos), este pavor (Deimos, o irmão gêmeo de Phobos; ambos são filhos de Marte, a personificação da guerra de agressão, e de Minerva, a personificação da guerra de defesa), que é projetado do proponente da neoidentidade pseudo-ontológica na pessoa que, inadvertida ou deliberadamente, pronuncia-se (ou que se descobre ter-se pronunciado antes mesmo do surgimento da loucura identitária!, pois “o print é eterno”) em favor da reta normalidade, do senso comum e da ontologia real.

Ora, de onde vem o ato de ser que faz do animal racional um ser humano? Do Amor, que é Deus. Onde não há phobos (o que aliás ajuda a explicar o susto dos que são hoje acusados de serem “[insira aqui uma neoidentidade]-fóbicos”: neles, no mais das vezes, há todo tipo de emoção – amor, ira, ou nojo, na pior das hipóteses – que não o medo). Mas continua o bom apóstolo que o Senhor amava, no mesmo versículo, dizendo que o medo (phobos) vem da punição.

E é por isso que o medroso projeta nos demais o seu medo; ele deseja que eles sejam punidos no lugar dele, que eles paguem por não ter tido medo dele como ele tem dos demais. Assim, é acusado de ter medo quem não tem medo, por alguém que tem medo de quem não tem medo, justamente por quem tem medo de ter medo, muito medo, da ausência de medo em quem não tem medo de quem tem medo. Uma situação digna de um parágrafo de Paulo Freire ou de um discurso em fluente dilmês.

A pseudoidentidade pós-moderna é precaríssima, e é ela que gera esse medo. Por ser no mais das vezes baseada em algo que não se tem (pois só se pode desejar o que não se tem – por exemplo, o desejo sexual ou a fome só perduram enquanto não se atinge a saciedade) ou numa negação (de comer este ou aquele alimento ou vestir tal tipo de roupa, por exemplo), sua fragilidade e evidente transitoriedade fazem com que seu “portador” (pois é uma identidade que é antes escudo que cerne) esteja sempre na iminência de não saber quem ele mesmo é. Do medo do nada, de ser ele mesmo um nada, de nada valer. E é por isso que ele tenta ar o seu medo adiante, para aqueles que lhe causam medo.

Estando então todos nós no meio dessa multidão de neoidentidade cambiantes e cheias de pavor, raro é quem disso escapa. Basta ver, por exemplo, o sutil rebolado da mocinha magricela com os quadris apertados e quase negados por uma saia jeans de crente, ou os “apóstolos da fita métrica” pseudocatólicos, que só não chamam os demais de “modestofóbicos” por serem eles mesmos fobofóbicos, apavorados com a hipótese de um dia ver-se a usar o vocabulário do “inimigo”.

É como nos EUA, em que não se pode mais usar a “palavra ene”, nigger, nem mesmo declamando em sala de aula universitária o belo discurso em que Martin Luther King declara que sonha com o dia em que ninguém seja assim apodado. Um não pronuncia a “palavra ene”, o outro não enuncia palavra alguma que termine em “fobia” por medo de lacrar inadvertidamente quando o que quer é oprimir, e um terceiro não come queijo porque o leite pertenceria às vacas. Todos estão dominados do mesmo modo por Phobos e Deimos, que projetam no próximo para não perder sua neoidentidade de crente, de Moça Católica Modesta®, de bolsonarista, de vegano, o que for. Todas essas identidades baseiam-se em pseudo-ontologias precárias, precaríssimas, líquidas, gasosas mesmo.

O escudo contra o Nada

São elas, todavia, o escudo com que cada um, nestes nossos tempos interessantes, protege-se do nada, do vazio absoluto que é só o que existe quando a própria ontologia é líquida. Se se deixa de ser, de se determinar ontologicamente como lésbica negra feminista ou católico tradicionalista sedeprivacionista, jamais sedevacantista, ao nada se retorna. Não se consegue perceber, via de regra, dentro desta multidão de fantasmas esvoaçantes, em mutação constante, com cores cambiantes, nada que seja sólido; o que era já se desmanchou no ar.

Daí a necessidade das neoidentidades e, principalmente, daí o medo, o pavor que toma os que nelas am o próprio ser. Quem lhes dá o ato de ser e quem lhes mantém em existência, inconscientemente, não é para eles o Amor, sim o medo. Phobos, um deusinho de segunda categoria, que a ninguém mete medo. Daí suas constantes invocações, daí a constante projeção no próximo do próprio ato de ser um ente amedrontado, que só existe por participação no medo em si que é Phobos.

Daí também, e é nisso que está a dificuldade maior que acomete quem tenta lidar racionalmente com toda uma pseudo-ontologia falsa e ilógica, a persistência das dissonâncias cognitivas que levam a pregar como verdade absoluta que não haja verdade absoluta, a negar o princípio da não-contradição, e por aí vai.

O diálogo não é possível, por ser todo diálogo um instrumento de contato entre consciências, portanto perfeitamente inútil quando se está tentando atingir duma consciência um inconsciente que cala a própria consciência, nega – como Descartes no início de sua meditação – até mesmo que aquele membro (por exemplo, algum típico do dimorfismo sexual humano) seja seu. Mas sem ter para chamar de sua nem uma Grande Narrativa, daquelas que no Século XX chacinaram milhões, nem uma identidade pessoal e real, como instância individuada da natureza humana, dotada ao nascer de tal aparato reprodutivo, só o que resta é o nada. O Nada.

Vem daí, então, o pavor ao diálogo – que é logo visto como ataque contra a base da percepção ontológica da falsa realidade em que o neoidentitário vive, como crueldade, maldade “que só pode ser” causada por… fobia. O que resta de capacidade dialógica humana toma apenas a forma de frases feitas e prontas freneticamente enunciadas logo antes de tampar os ouvidos com as mãos enquanto se cantarola tralalá para não ouvir as palavras impuras do outro, que podem demolir toda a própria estrutura do que o neoidentitário vê como realidade.

A alternativa percebida sendo apenas entre a neoidentidade ou o Nada, a dissolução no vazio escuro que fica do lado de fora do cuidadoso mundo de fantasia construído a partir de categorias imaginárias que deformam antes que informem, não é de se estranhar que esteja já sendo pregado por aí que até mesmo negar-se a ter relações sexuais com qualquer construto de gênero (que para os neoidentitários não precisa necessariamente ser humano, posta a inexistência duma natureza humana, ainda que não se conheçam cachorros ou gatos transgênero) seria sintoma de fobia e de preconceito. É o medo, e a mentira que sobre ele se constrói. E só é isso que há: o medo e o Nada.

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