É curioso que os usos dessas palavras varie tanto num espaço tão pequeno e as pessoas nem se deem conta. E qual será a etimologia de “gringo”?
Gilberto Freyre não se interessava pelo Rio Grande do Sul, mas me lembrei dele ao ver na orla do Guaíba uma escultura de Oxum. O amigo gringo resolveu testar meus conhecimentos e perguntou como eu sabia que era Oxum. Simples: amarelo e rio. Não botou fé até andar à plaquinha e ver escrito “Oxum”. Expliquei que amarelo é a cor de Oxum, que a seu turno é a orixá da água doce, e nós estávamos à beira de um rio. Elementar, meu caro Watson. Iemanjá é da água salgada; Oxum, da doce.
Ficou intrigado. Então como Iemanjá, e não Oxum, era cultuada como padroeira de Porto Alegre, se o Guaíba é doce e Iemanjá é da água salgada? Pensou e concluiu que devia ser por causa do sincretismo: Nossa Senhora dos Navegantes é a padroeira católica, que é sincretizada com Iemanjá, que acaba sendo homenageada. Acrescentei que em Cachoeira, na Bahia, cultua-se Iemanjá à beira do rio Paraguaçu, cujas águas são salobras na cidade por causa da proximidade do mar. Como Porto Alegre está perto do mar…
O amigo gringo teve ocasião para tirar essa dúvida com o amigo gaúcho da fronteira. Nossas suspeitas foram confirmadas. No mais, confirmou-se ainda que a macumba é forte no estado, o que trouxe à tona a questão do porquê de o Rio Grande do Sul ar por estado branco europeu.
Ambos convergiram para a culpa de Gramado, uma cidade meio cenográfica montada para turista. O brasileiro iria para lá fingir que saiu do Brasil e viver suas fantasias românticas de Europa civilizada. O portalegrense, em particular, iria para Gramado dirigir muito bem, sem atropelar os pedestres, e elogiar a educação do povo de Gramado. Depois voltaria para Porto Alegre para atropelar pedestres.
Numa rápida pesquisada, deu para descobrir que volta e meia quebravam a estátua de Oxum no Guaíba. O barraco é a mesmíssima coisa que em Salvador: os crentes morrem de medo de macumba e destroem monumentos públicos. É claro que eles só têm esse medo porque acreditam nos poderes dos orixás. Eu não tenho medo de macumba porque sou ateia.
O gaúcho da fronteira é versado em assuntos de macumba e tem pai de santo. Já o amigo gringo descobriu que um anteado “brasileiro” encarnava caboclo em umbanda. Posso então chutar que Freyre está certo quanto à importância do negro na unificação cultural do Brasil: onde português não ficava, ia o negro levando a língua portuguesa e a cultura brasileira – macumba inclusa.
Contei que os negões da Bahia se orgulham de sua cor e atribuem propriedades viris à sua “tinta”, daí existir uma ofensa dirigida por eles aos mulatos: tinta fraca ou tinta ruim. Segundo o amigo da fronteira o mesmo se dá com os negões de lá, que creem montar a cavalo melhor do que todo mundo por serem negões. Por lá, existe a conotação elogiosa da palavra “gaúcho”, de modo que os negões seriam mais gaúchos do que os pelo-duro. Por outro lado, em Florianópolis descobri que existe a expressão “coisa de gaúcho”, usada do mesmo jeito que outras regiões dizem “coisa de baiano” ou “coisa de preto”. Moral da história: o gaúcho é um tipo cultural bem definido, e a conotação pejorativa ou elogiosa vai variar conforme o juízo de valor que os habitantes de uma região façam dos gaúchos.
Então creio que podemos enxergar a coisa assim: existe no Rio Grande do Sul uma base cultural brasileira que é uma variação da tradicional tríade branco, negro e índio. O mais pertinente dessa variação é o fato de os gaúchos serem índios por meio dos charrua em vez dos tupis. Nesse cenário chegaram os colonos que estabeleceram comunidades rurais. Ao contrário do Nordeste e do Rio de Janeiro, lá chegaram muitas mulheres europeias, de modo que é mais difícil abrasileirar essa população. Afinal, se o homem vem sozinho e casa com a cabocla, seus filhos serão aculturados. Se os colonos vêm aos pares, um lar europeu é formado.
Mas ao longo dos séculos essa mistura vem sendo feita – tanto na cama quanto na cultura –, e os gaúchos serão diferentes do resto do Brasil também quanto aos brancos que os formaram. Só o negro permanece o mesmo.
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