Grace Kelly ou de atriz
a princesa com a mesma elegância | ReproduçãoGrace Kelly ou de atriz a princesa com a mesma elegância (Foto: Reprodução)

O Brasil ou por uma "onda" de greves no funcionalismo público. A ação longa – no caso de algumas universidades federais, como a do Paraná, foram 120 dias sem aulas, que devem retornar na próxima terça-feira – e ampla (em seu pico, mais de 30 setores diferentes se reuniram, segundo a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal) sinaliza uma retomada no poder de mobilização dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que escancara a necessidade urgente de regulamentação. Apesar de ser garantida pela Constituição de 1988, não existe até hoje uma lei que regule os movimentos dentro do setor federal, gerando um dilema: cruzar os braços é uma maneira legítima de se conseguir melhorias, entretanto, os prejuízos para a população são amplos. Diante desse ime, o G Ideias foi buscar opiniões para refletir sobre como essas ações apontam o contexto vivido no país.

"Foi uma das principais mobilizações sociais do Brasil democrático", acredita o sociólogo e pesquisador da Universidade de Winsconsin-Madison (EUA), João Alexandre Peschanski, que também integra o comitê de redação da revista Margem Esquerda (Boitempo). Para ele, as greves de 2012 foram um evento político tão importante quanto os movimentos sindicais de 1979 e a Marcha Nacional do MST, em 1997. A magnitude dos protestos neste ano, diz Peschanski, sinaliza ainda um alto nível de coesão, algo complicado de se sustentar em greves longas, união facilitada pelo uso de redes sociais. "É outra característica própria, que permitiu o envio rápido de informações, com impacto nacional."

Para o professor de filosofia política da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Edson Telles, as paralisações indicaram uma recusa ao que ele chama de uma "certa precarização do trabalho realizada pelo estado brasileiro", não somente na questão salarial, mas também no plano de carreira. Ele critica, por exemplo, o modo de produção exigido dos professores universitários, transformando a elaboração de conhecimento (pesquisas, artigos acadêmicos, eventos) em "linha de produção". "Quanto mais se produz, mais ascensão na carreira. A qualidade neste modelo fica em segundo plano, tornando precárias não só as relações de trabalho, mas também a educação, em um país com defasagem enorme e histórica nesta área." O momento econômico favorável e a taxa de desemprego baixa ajuda, segundo Telles, a impulsionar os movimentos grevistas já que, se há possibilidade de troca de emprego, o trabalhador tende a aceitar menos condições desfavoráveis, ao contrário do que ocorre quando há escassez de vagas.

Tanto Pechanski como Telles criticam a postura do governo federal em relação ao assunto, e dizem que houve uma inabilidade para solucionar o problema, já que a inflexibilidade das negociações estimulou ainda mais a mobilização. "Foi o maior enfrentamento social do governo da presidente Dilma Rousseff. Durante os dois mandatos do ex-presidente Lula, a Central Única de Trabalhadores e o movimento sindical pareciam ter um canal de diálogo mais direto com o Palácio do Planalto, indicando recuo. Já Dilma optou por certo enfrentamento", salienta Telles. O fato de o Brasil receber eventos de grande porte nos próximos anos (a Copa do Mundo e a Olimpíada), o que gerará uma necessidade ainda maior do funcionalismo público, diz o professor de Sociologia da PUR, Lindomar Wessler Boneti, também foi um propulsor. "É justamente nesses momentos que se busca esse instrumento."

Contudo, para se entender a greve, é necessário analisar a configuração atual de trabalho, que se dá em torno da aquisição do tempo, ou seja, não se mede pela produção, mas sim pela jornada cumprida. "Enquanto a relação continuar assim, a greve não será um modo defasado de protesto, mas deve perder sua força a longo prazo, quando o trabalho não for mais entendido como tempo. Isso dificultará a vida do trabalhador, que entrará em uma lógica de concorrência com os colegas, o que é uma armadilha", crê Boneti.

Público x Privado

Apesar de garantida pela constituição, as paralisações parecem assimétricas entre o setor particular e público: no primeiro, o patrão costuma ser o mais afetado; no segundo, a população é a principal prejudicada, gerando a sensação de que funcionários pagos pelo estado, parados, estariam cometendo uma "injustiça". "Há infinitos tipos de contrato trabalhista no setor privado, mas, em uma relação capitalista pura, a relação é interdependente, um precisa do lucro e o outro tem de sobreviver. Quando o empregador é o Estado, cujos objetivos não são tão simples quanto ter lucro, mas sim um orçamento e sociedade estáveis, o salário do servidor não é dependente apenas do que é produzido, mas resultado de um complexo processo de arrecadação de recursos obtidos por meio de impostos e taxas", explica Pechanski.

Essa dicotomia, segundo o sociólogo, gera dois pensamentos distintos em relação ao movimento: em uma primeira perspectiva, o fato de a sociedade arcar com as consequências extremas faz com que se pense que a greve não é justa, afinal, toda a população também paga aqueles salários. Em uma segunda visão, assumir os custos da greve pode ter saldo positivo se, no final, a situação do serviço público for melhorada e trouxer benefícios para a sociedade. "São custos provisórios, como um período de transição penoso para chegar a uma condição melhor", reitera Pechanski, que lembra, ainda, que nem toda greve no setor público beneficia a população. "Algumas são protestos partidários sem capacidade de ampliação. Entretanto, a paralisação de 2012 trará possibilidades reais de benefício."

A socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná, Benilde Motim, não concorda com essa divisão entre particular e público. "As greves sempre trazem prejuízos. Não só para os patrões ou para os governos, quanto para a população em geral, e também para os trabalhadores, que gostariam muito de não precisar fazer greve para garantir seus direitos." Prova de que há perdas para todos, lembra a professora, foi que tanto a greve dos caminhoneiros (setor privado) quanto a greve dos policiais federais (setor público) causaram problemas para toda a sociedade.

Responsabilização

Para o cientista político Má­rio Sérgio Lepre, é necessário que o uso da greve pelo setor público seja revisto e rediscutido com a sociedade, já que se trata de uma categoria, segundo ele, com "um diferencial razoável" em relação aos trabalhadores da iniciativa privada. "Há uma carreira muito convidativa, você tem concursos públicos disputadíssimos, e uma estrutura no país voltada para quem quer ser servidor público." Lepre acredita que a pauta de reivindicações deve ser mais divulgada pelos grevistas, para que as pessoas entendam o movimento. "A questão do salário fica no foco, mas se fala pouco na reestruturação da carreira pública. O Brasil tem excesso de cargos em comissão, por exemplo. Tem ainda alguns privilegiados. Por qual motivo um desembargador do TJ chega a ganhar R$ 50 mil e outros trabalhadores ganham R$ 2 mil? Promover essa discussão fará com que a sociedade compreenda a greve."

Lepre frisa que há necessidade de uma cobrança maior entre os trabalhadores. "Há um certo comodismo de alguns servidores, que o que mais querem é ficar parados. Cabe ao comando da greve trazer isso para a discussão também. Nas universidades que ficaram paradas, como fica a responsabilidade dos reitores? E o aluno, como vai cobrar depois? Vai ficando uma coisa sem culpados. Eu duvido que os dias perdidos de aulas nas universidades, por exemplo, sejam todos repostos."

Apesar de modelo desgastado, a greve ainda é a principal forma de conseguir melhorias

A negociação entre trabalhadores e empregador, ou servidores e governo, ainda é a principal saída para evitar a greve. No entanto, diz o professor de filosofia política da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Edson Telles, onde a precarização do trabalho é forte e a desigualdade social ainda impera, como no Brasil, as paralisações costumam ser a ferramenta mais eficaz para se conseguir melhorias nas condições de trabalho. Já o professor de His­tória Contemporânea da Uni­versidade Tuiuti do Paraná (UTP), Clóvis Gruner, acredita que a ferramenta está desgastada. "Ela perdeu muito da força que já teve, pois o mercado globalizado fragiliza e dispersa os sindicatos."

Historicamente, explica Gruner, o Brasil viveu momentos decisivos que definiram a greve como movimento político e de trabalhadores: a paralisação geral de 1917, que mobilizou classes e categorias distintas, marca o início da formação do sindicalismo ligado a uma ideia anarquista. O historiador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Marco Villa, recorda que o período da Primeira República (no início do século 20), foi caracterizado por diversas paralisações, em uma época em que o trabalhador não tinha direitos como férias ou aposentadoria. "Foram greves realmente heroicas."

Entretanto, com a ditadura do Estado Novo (1937-1945), houve uma repressão violenta. O retorno das paralisações com o fim do regime até 1964 foi intensa, e depois rechaçado novamente pela ditadura militar. "Só em 1978, no final do governo de Ernesto Geisel é que começaram movimentos grevistas, mas ainda havia muito controle por parte do Estado", esclarece Villa. Foi esse período de movimentos no ABC paulista e o surgimento da Central Única de Trabalhadores (CUT) que geraram transformações mais significativas, acredita Gruner. "A greve aparece muito mais como instrumento político, além de ter retomado oposição à ditadura militar. Isso perdura nos anos 1980, porém, de uma década e meia para cá, os movimentos perderam a intensidade."

Antipatia

Ainda hoje, os movimentos grevistas, seja no setor público ou privado, são vistos com uma certa aversão, o que é, segundo os especialistas, consequência da cultura política herdada da ditadura. "É sabido que há uma parcela significativa da população que se posiciona sistematicamente contra mobilizações populares, que considera que greves são ‘desordem’. Numa democracia, a possibilidade de expressar descontentamento é um direito fundamental", diz o sociólogo João Alexandre Peschanski. Clóvis Gruner corrobora o ponto de vista.

Regulamentação protegerá trabalhadores e sociedade

O movimento grevista suscitou outra questão importante e indefinida há 24 anos: desde a Constituição de 1988, quando o direito de greve foi garantido, não há regulamentação para os movimentos dentro do serviço estatal. Agora, o governo está empenhado em aprovar o projeto de lei do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) que cria normas, sugere métodos alternativos para resolução de conflitos e determina que é preciso manter uma parcela mínima de funcionários trabalhando. Os porcentuais seriam: 80% para segurança pública, 60% para os serviços essenciais e 50% para o restante.

Segundo os especialistas, com a normatização, abre-se mais possibilidade para diálogos. Além disso, a ausência de normas, ao contrário do que se imagina, não protege o grevista. "É uma vergonha do estado democrático ainda não ter feito a regulamentação. É descaso? Incompetência? Não me parece. Sem regras, cabe ao governo assumir medidas que pensa serem eficazes. Ao invés de procedimentos democráticos claros, temos decisões autoritárias", frisa o professor de Filosofia Política da Unifesp, Edson Telles. A professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR, Benilde Motim, crê que a regulamentação é necessária, principalmente em serviços essenciais, mas que há necessidade de acompanhar de perto o que estará na lei. "É preciso que estejamos atentos para que o bom senso prevaleça e não haja cerceamento dos direitos dos trabalhadores."

Autor do livro Greve do Servidor Público (Ed. Atlas) e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, Sergio Pinto Martins crê que a ausência de normatização gera um círculo vicioso, ou seja, o servidor vê na greve um único meio, e não foca em estabelecer um diálogo prévio. "Isso acontece exatamente porque não existe o estabelecimento de uma data-base, e o salário de algumas categorias, como a dos professores, está defasado. Há uma disparidade grande entre setores, o que gera briga dentro do próprio funcionalismo." Ele sugere que sejam adotados métodos como a arbitragem, o que já é feito, de acordo com Martins, em países como Portugal. "Um especialista analisa as alegações e é quem decide se as solicitações estão coerentes."

Urgência

O surto de paralisações fez com que o governo federal tomasse a questão como prioridade, entretanto, a aprovação não deve ser tão simples, acredita o historiador e professor da Ufscar, Marco Villa, tanto pela complexidade da proposta (que deve ser melhor debatida) quanto pelo enfrentamento que os parlamentares devem enfrentar com a categoria. "A regulamentação é uma tarefa para o congresso nacional, mas, por conta das eleições em outubro e o funcionamento lento do congresso neste semestre, acho difícil algo ser definido ainda em 2012."

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